4.1.10

O buraco. 2



-Não. Não existe essa possibilidade.
-Mas...
-Não.

...

Uma catedral feita inteiramente de vidros e mosaicos com certeza não é um local ruim de morrer. A iluminação hiperrefletida que a construção proporcionava através da luz do Sol tornava aquele ambiente onírico, e como uma mágica milenar presente na atmosfera, pequenos cristais imaginários de luz brilhavam e brilhavam, mini-sóis particulares daquela construção que transcendia a noção terrena. O ar mantinha um aroma de miosótis, lavanda e oliveiras, e pequenas flores vermelhas se espalhavam pelas paredes e chão ao redor do altar. O casal sorria pra ele, dois jovens sorridentes, sorrisos brancos como papel, cabelos bagunçados, tranças infantilmente feitas no cabelo da menor, uma garota de uns 10 anos, cabelos lisos como a maré, negros como um corvo selvagem, e um vestido rendado simples, ridiculamente simples, pano vagabundo e manchado de café, laços de cetim, sapatilhas de couro, mas apesar da modéstia, aquele conjunto caia nela como um vestido de gala para uma valsa com o príncipe das histórias de fadas. O jovem, nove anos mais velho, a personificação não-certa do príncipe encantado, cabelos loiros e sujos, piscava com um sorriso sarcástico, mostrando olhos azuis e dentes alinhados. Uma camisa branca e um jaleco de couro preto caiam sobre seu tronco pequeno, ombros curtos, braços finos. A calça de algodão prendia firmemente as pernas magras, destacando mais do que deveria os joelhos nodosos e o tênis vermelho que ele usava.
Entretanto, nada disso, absolutamente nada, alterava o estado de espírito do homem que os observava em frente ao altar. Seus olhos vagos não refletiam a extrema e exagerada iluminação daquele local, buracos negros de solidão, seu cabelo e suas roupas sociais encardidas não balançavam com a brisa marítima que invadia a catedral, sua boca seca e branca não mostrava o sorriso daquelas crianças, seu corpo, surrado como um saco de lixo, não acompanhava o ritmo daquele local. A única coisa que se mexia eram suas mãos, esqueléticas e apáticas em contraste com as mangas do terno cinza, como um molusco asqueroso saindo de sua concha. Molusco esse que não parava de tremer, mas não de frio noturno, não de um beijo de amor, não de uma morte inesperada. Tremia por não ter outra opção.
Pequenas flores vermelhas se espalhavam pelas paredes e chão ao redor do altar. Flores pequenas, grandes, pontuais, gigantes, disformes. Com o cessar do Sol, os cristais de luz desapareceram, o ar parou de rondar a construção, o aroma doce se dissolveu naquele cheiro amargo, grotesco e pesado que ele conhecia muito bem. Vinha daquelas flores vermelhas do altar. Flores disformes, grudentas, liquidas, solidificadas, escarlates, pedaços de sangue, vísceras e carne podre espalhados por todos os lados ao redor dos dois jovens. O homem se aproximou dos dois corpos, ainda com o revolver em sua trêmula mão. Tocou os dois buracos que fez bem no meio do tórax deles, dois buracos de carne vermelha, sangue resfriado e ossos espatifados. Meteu a mão dentro da caixa torácica da garota, remexeu, girou, tateou como quem procura uma meia da sorte no fundo da gaveta de roupas, e arrancou num gesto bruto o coração espatifado da menina. Olhou o órgão, cheirou, lambeu e por fim o jogou no chão. Fez o mesmo com o garoto, pegou seu coração e nem sequer o pôs perto do nariz. Só o tato o mostrava que aquilo também não era o que procurava.
Nada disso o abalava. Talvez porque aquele sentimento onírico já fosse rotina a ele, talvez porque essa rotina já fosse completamente ignorada por seu coração, talvez porque seu coração estivesse cortado ao meio como um pedaço de carne de terceira rodeado de moscas que é comprado naqueles açougues de periferia por uma mãe de três filhos nojentos, cachorros vira-latas nojentos, que só babam choram e pedem por comida, mas não tem comida. Por que não cala a boca desses vermes meu deus, clama a mãe, mas deus não ouve. Deus nunca ouviu a mãe, deus nunca ouviu a ninguém. Nem a ele. Nunca importaram suas preces, seu desespero, seus gritos, seu sangue derramado, suas mortes, suas camisas manchadas, seus amores perdidos, nunca importaram o calvário na terra, a cruz metálica que carregava. Nada importa. Apenas desista, abandone a esperança, cruz do mundo irreal, pare de rezar, pare de crer, para com a fé, apenas pare de EXISTIR.

...


-Será que um dia seremos felizes, G.?

Seguidores